Antônia e Felipe se sentaram na mesa mais ao fundo. Pediram dois rodízios. Antônia escolheu água mineral, sem gás, com muito gelo e limão. Felipe agradeceu. reforçando que não bebia durante as refeições.
- Anda tudo tão esquisito.
- Em que sentido?
- O nosso tempo, esse tempo, a cidade.
- Chato, né?
- ...
- É que seu final de ano foi muito conturbado.
Enquanto ouvia essas últimas palavras, tentando evitar o contato com dores tão recentes, Felipe desviou o olhar até a janela, estourada com a luz de um mês de abril excessivamente quente. Pouco antes, de manhã, estivera, acidentalmente, numa galeria, folheando livros, vendo-lendo-ouvindo um jeito ambiente de criar poemas com efeitos de pedal e guitarra. Aquilo tudo, numa espécie de liturgia compartilhada entre vinte pessoas, não mais; o silêncio de um encaixando na respiração do outro, e a distração sendo o verso da comoção de alguém; aqueles dedilhados derramando mundo, falando de coisas que só revelamos quando não há palavra; ah, a palavra, seguiu pensando Felipe, reparando num fio não domesticado na sobrancelha de Antônia; aqueles sons, aquela harmonia sintetizada com uma delicadeza tão compatível com o que entrega a natureza, e a inevitável careação com os cortes fundos que provavelmente ainda sangravam para dentro - caramba, Felipe teve a impressão de uma sombra grande na janela, um avião -; aquela manhã, toda ela, em cada detalhe, levantara, mas derrubara o dia, dando a dimensão da construção permanente da vida, bonito, mas tendo a saudade como fatura, meu Deus.
- Me perdi agora.
- Posso dar um gole?
- Cuidado para não impregnar o copo com cheiro de sashimi.
- Pode deixar. Mas vou desistir de tentar pedir um beijo.
- ...