em vias de acontecer

Não saberia dizer exatamente o que levou as pessoas, essas pessoas que mencionei, a pensar que, você, a dizer que eu, talvez, devesse, pudesse ter feito arte. E, ao dizerem isso, ao falarem em arte, no sentido mais burocrático da palavra, estavam justamente buscando dar conta de toda a ideia de liberdade que, ah, meu deus, a arte pode ter de bom. E foi assim: elas olharam no meu olho, de um jeito que eu evitava olhar, pra repetir "é seu olho, seu olho, o jeito de olhar". Num trem em Berlim, enquanto a gente voltava de algum lugar; na quadra de um prédio em São Paulo; por WhatsApp, três ou quatro frases de uma namorada que eu não soube ter. E um dia, andando no frio de uma avenida que já quis concentrar a história dos meus amigos todos, que na verdade foram poucos; saindo de uma cerveja, depois de conversar com um artista francês que perdeu maio de 68 por conta do fechamento dos aeroportos; senti aquele frio me desenhando por dentro da jaqueta; alguma parte da franja abrindo o meu caminho, as pessoas olhando com certa pena de mim, porque meu olho, o olho do olhar, estava embaçado por dentro, molhado pra quem via de fora. E eu fui pisando passos firmes, curtos, eu que sou de passos largos; fui deixando as luzes me tocarem, mais fundo do que jamais me deixei tocar por alguém - algumas imagens, na minha cabeça, colavam-se umas às outras, tratando de relacionar aquelas falas aparentemente perdidas e gratuitas com o meu presente, um presente que não apontava para um futuro certo e que, justamente por isso, acho, aguçava o gelado que dobra de força, em mim, quando antecipa o risco de alguma coisa em vias de acontecer. Estava me convencendo, convencido, deus meu - qualquer deus que queira e possa ser -, de que era aquilo, era que eu tinha nascido para viver aquilo que, quando olharam no meu olho, cintilante, acharam por bem chamar de artista.