Relâmpagos

Me lembro bem da primeira vez que tive contato com um livro, um romance, do Trueba. Era um período de problemas e crises ligeras, quando eu flutuava entre viagens utópicas e aulas boas, esquisitas, em Barcelona. Era o tempo em que eu tinha tempo de ir quase todos os dias à praia, no verão, para nadar crawl de ponta a ponta, desviando o olhar para a areia, de tanto em tanto, tratando de vigiar meus documentos e o dinheiro, enterrados sempre próximos, mas não embaixo, da minha camiseta. Penso e vejo o sol, de novo; as minhas escolhas por evitar as escadas automáticas, no metrô, ao longo do caminho - existia alguma disposição natural para tudo o que, inclusive preguiçosamente, sublinhasse a vontade de vida. 

É provável que justamente essa vontade tenha estimulado a leitura, entusiasmada, de Cuatro amigos, livro que peguei emprestado da minha irmã, por cima de um comentário ambíguo, porque fora um best seller na Espanha, com uma quantidade imensa e excessiva de gírias, explicou ela, que fazem o livro soar bobo e adolescente diversas vezes. Mas aí, acho agora, achei também enquanto eu lia, esfarelando o corpo molhado com os grãos de areia; aí, repito, ficava a isca que chegou em mim: eu era bobo e adolescente, sendo bobo e adolescente, crescendo e envelhecendo, bobo e - tivesse como - efervescente para sempre. 

Então li a história sobre os quatro amigos, como pausa entre leituras de Cortázar, Ramón Ribeyro, Echenique e Sábato, com uma urgência reveladora sobre as minhas bobeiras e, ao mesmo tempo, a minha profunda satisfação com a maneira como Trueba faz as saudades infiltrarem diálogos bestas, que não se repetem, nem depois, nem mais. E assim eu encontrava a saudade, saudade que sempre tive das coisas que dividi - e me dividiram entre pessoas de quem guardo as melhores lembranças, ainda que sejam as melhores por serem as únicas que eu pude ter. 

Trueba escreve sobre a amizade.

Foi diante desse pano de fundo que li, alguns anos mais tarde, o incomparável Saber perder, dos preferidos da vida jovem adulta que acolhe os últimos respiros do tudo ainda pode acontecer, caramba. E, página a página, selecionava trechos que postei num blog velho, com alguns poucos leitores fiéis pedindo indicação sobre fonte e tradução.

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Por isso, na semana passada, comprei a recém publicada versão nacional de Blitz, livro que estava separado na lista que precisava ir buscar, ou pedir para trazer da Espanha. É um romance curto, breve, numa edição gostosa de folhear, entre mancha, imagens e ilustrações. É a história de Beto, da separação de Beto durante a viagem para a final de um concurso de paisagismo, em Munique. O tempo é o tempo da crise sem fim da Espanha, do desencantamento com o projeto de uma Europa humana, forte e universal. Nada disso. Beto anda inseguro com os caminhos profissionais e desmonta ao ser trocado por um cantor uruguaio, ex-namorado de Marta, agora sua ex-namorada, tão linda, tão linda que nunca vi igual - lemos, quase no fim da trama, quando Beto e um arquiteto rival dividem a mesma fileira de poltronas no avião. 

Até o código da reserva do voo de volta lembrava que tudo andava mal: M4RTA.

No percurso do protagonista, despedaçado por uma vida treintañera que começa a apontar para a dispersão da esperança, fatal, Beto se envolve com uma das organizadoras da premiação, alemã, divorciada, podia ser a sua mãe. E, assim, apesar de a orelha destacar o tom tragicômico das piadas que atravessam os encontros entre quem existe no livro, o que fica, de novo, é o jeito doído que Trueba encontra para mostrar o bonito da vida acontecendo, e se despedindo, inevitavelmente. 

Sempre me lembro, continuei, de algo que ouvi acerca de Buñuel: ele falava que era ateu, que não acreditava em Deus, salvo no deus inventado pelos homens, na mentira que erguiam para se consolar.