Pensando sobre escrita e estilo, numa curta entrevista que dei para o TAB-UOL, a convite da Beatriz Prieto. A matéria está aqui.
1- Como definir o que é estilo quando tratamos de escrita?
Gosto sempre de lembrar que estilo era aquela espécie de estilete que os romanos usavam para escrever na tabuleta de cera. Quem tinha status tinha seu próprio estilo. Essa imagem, tão parecida com as das tablets que muita gente usa hoje para desenhar, ajuda a entender o que é estilo. É uma convergência de experiências muito diferentes - culturais, midiáticas, cognitivas, motoras - que acontecem de um jeito único em cada um de nós. Isso também é o estilo na escrita: é a maneira como o texto acontece à maneira de quem escreve.
2- Quais autores (clássicos e contemporâneos) você identifica como referência em matéria de estilo textual? Como, ao seu ver, eles incorporam estilo ao que escrevem?
Eita, são vários. Na prática, acho que o que enlaça o leitor, num texto literário, é esse encaixe entre o estilo do autor, que absorve como a vida acontece pra ele, e nossa própria expectativa sobre o mundo (inclusive os possíveis, que ainda não são). Por afinidade pessoal, destacaria, por exemplo, o Beckett ("clássico não-clássico moderno"), com seus monólogos (ou diálogos) sem solução e um encadeamento de períodos raramente longos. Entre autores mais contemporâneos, também por preferência minha, mencionaria o galego Agustín Fernández Mallo, que tem um estilo descritivo-realista e que, em alguns dos seus romances, usa capítulos bem econômicos. Como ele opera com o quase-absurdo das vidas de agora, ser enxuto e detalhista ao mesmo tempo acaba funcionando como estratégia que transfere para o leitor a tarefa de tirar conclusões sobre a viabilidade das figuras fantásticas que ele apresenta.
3- Quais exercícios você indicaria para quem quer aprimorar a escrita e, consequentemente, construir um estilo pessoal?
Também são vários. O primeiro é qualquer movimento em direção à diluição de ideias muito fixas em relação ao que é "um bom texto". O estilo vai acontecer - e ser mais claramente identificável - à medida que quem escreve topa correr o risco de ser desafiado por estilos diferentes. É nesse confronto com o estilo do outro que tomamos maior consciência do nosso próprio estilo. Por isso, olhar para grupos e correntes que tentaram estabelecer processos de escrita (dadaístas, surrealistas, OuLiPo etc.) sempre é um exercício importante. Mas igualmente importante, repito, é não se fixar em nenhum deles. É mais ou menos o que faz Queneau, com figuras de estilo, no seu famoso Exercícios de estilo. Essa abertura ao estranho ganha ainda mais quando passa a admitir como interlocutores processos de fora das "artes do texto". Isso fica claro nos casos do contato do texto com as artes visuais. Quando Burroughs, há quase 60 anos, escreveu que a literatura estava pelo menos 50 anos atrasada em relação às artes visuais, estava apontando justamente pra isso. E eu concordo. Quando olhamos tudo o que veio com a poesia concreta, a "minimal writing" do pós-guerra, a arte conceitual, encontramos renovações da escrita intimamente relacionadas com a superação da "literatura". E, agora, com o digital, isso fica óbvio. A sintaxe do WhatsApp ou os chats no Twitch são, na minha perspectiva, absolutamente interessantes para a escrita que estamos vivendo. A maneira como as pessoas se perguntam e se respondem (em texto), enquanto acompanham uma live, está pautando a oralidade que sempre precedeu a escrita. Tem uma inversão, percebe? E isso, eu acho, é fabuloso.
4- Ao seu ver, os tão em voga cursos de escrita criativa e storytelling podem ajudar quem deseja escrever melhor?
Como qualquer curso, depende. Tendo a acreditar mais nos cursos de escrita criativa que nos de storytelling. Os primeiros costumam sair de abordagens de quem tem maior contato com estudos de linguagem. Os segundos costumam apostar em fórmulas, em manuais de monomito etc. E por que faz diferença buscar um curso que queira esmiuçar um pouco mais a linguagem? Pra mim, porque dominar a linguagem é dominar a tecnologia e não a técnica. Se eu sei a tecnologia, consigo experimentar diferentes técnicas. Agora, se só aprendo o modelo da jornada do herói, fico achando que narrativa é sempre a jornada do herói. Por outro lado, se acontece de eu cair diante de um poema como "Thought", postado por Saroyan (chamo de poema porque ele é tido como poeta), no Instagram; dos paradoxos e autorrefutações do Vautier ou do clássico Red Square, White Letters, do LeWitt, sou obrigado a me haver com uma dimensão do texto (da linguagem) que passa despercebida no uso corriqueiro das palavras. É no contato com essa outra camada que estão as maiores chances da descoberta de um estilo próprio. A linguagem padrão, a narrativa do storytelling, são empobrecedores no sentido de que reforçam o padrão, a redundância, e desencorajam a diferença. E o estilo está na diferença.
5- Em que medida a cultura digital muda a nossa relação com o texto? Ao seu ver, este contato intenso com o mundo digital influencia nosso estilo de escrita?
Sem dúvida. Adiantei nas questões anteriores. O digital, e todo seu lastro no código, está colocando cada vez mais em evidência o alcance programador do alfabeto. A nossa relação com as interfaces é permanentemente mediada por comandos de texto. Nem sempre estamos atentos a eles, mas, como mencionei no caso do chat do Twitch, aquela interface está programando nosso modo de usar o texto. A ponto de, como também já falei, embaralhar a sequência oralidade-escrita. Tem criança que aprende a mexer no TitTok antes de desenvolver, na fala, relações sintáticas complexas. Quando ela chegar no texto escrito, a poesia vai ser outra. E isso é incrível. Fico pensando se Benjamin escrevesse As passagens hoje. Ele necessariamente precisaria de uma interface intermídia, porque não existiria a possibilidade de deixar de lado os vídeos do YouTube, os rankings do Reddit, os e-mails, as dancinhas do TikTok, os áudios, as figurinhas do WhatsApp e tudo isso que tá escrevendo o nosso tempo. E essa escrita disso que nós somos, desse inconsciente estilo coletivo, vem com a vantagem, se é uma vantagem, de estar sendo armazenada como nunca antes. Se é verdade que esse excesso de texto produz esquecimento, é igualmente verdade que nunca tivemos tanta capacidade técnica de lembrar o que escrevemos (com texto, com cliques, com imagens, sons etc.). Isso terá uma repercussão incalculável sobre a escrita.