Sempre que leio A escrita, do Flusser, penso que, ao contrário do que o autor indica como tendência, como futuro, o texto do livro parece colocar as coisas numa perspectiva histórica - de consciência histórica -, com um "antes e depois" claro e organizado. Parece difícil imaginar que tenha havido um "inventores da escrita" x "mitômanos, mitólatras", defensores do linear x partidários da circularidade do tempo, do espaço, da representação, da vida, com toda a "consciência" que Flusser reconhece naqueles. Isso só alcança algum sentido, conveniente, se projetado sobre um eixo do tempo, no qual as sequências desenham uma trajetória retrospectiva.
Também a sugestão de que a escrita alfabética, como anotação do som da fala, sucumbiria à escrita numérica, muito mais abstrata (mítica, imagética, circular) e potencializadora do pensamento humano, tem enfrentado diversas investidas por parte do desenvolvimento que o texto alfabético tem tomado, particularmente com as linguagens de programação, para quem o alfabeto vem servindo à revelia de qualquer relação com nossos sistema fonético (o computador não precisa falar consigo mesmo - só a gente que ainda sonha com Siris falando a nossa língua).
Seja como for, a leitura é boa, e a especulação fornece algumas hipóteses a não se perder de vista. É isso: como hipótese, é um bom convite ao pensamento.
“A tentativa de desvendar o motivo que está por trás da invenção do alfabeto encontrou, aparentemente, duas respostas diferentes. De acordo com a primeira, o objetivo dos inventores era iconoclasta: não eram as imagens (nem ideogramas) que deveriam ter sido caracterizados no escrever. Ao contrário, seriam sons. Isso para libertar a consciência do pensamento mágico vinculado a imagens. De acordo com a outra, o objetivo dos inventores era a produção de um discurso linear: no escrever, os sons deveriam ser caracterizados, para que um falar linearizado, ao invés de um sussurro mítico e circular, fosse guiado para o caminho. Se observarmos essas duas respostas de perto, perceberemos que se trata, na verdade, de uma única asserção.
Os inventores do alfabeto viram, nos criadores de imagens e nos mitólogos, inimigos, e não distinguiram, com razão, uns dos outros. A criação e adoração de imagens (magia), tanto quanto o sussurro escuro e circular (o mito), são os dois lados da mesma moeda. O motivo por trás da invenção do alfabeto foi superar a consciência mágico-mítica (pré-histórica) e garantir espaço para uma nova (histórica) consciência. O alfabeto foi inventado como código da consciência histórica. Se nós devemos abrir mão do alfabeto, isso se dará provavelmente porque estamos nos esforçando para superar a consciência histórica. Estamos cansados de progresso, e não apenas cansados: o pensamento histórico comprovou-se irracional e homicida. Essa é a razão verdadeira (e não a desvantagem técnica do alfabeto), pela qual estamos preparados para desistir desse código. ”