Se tive uma certeza lendo Meia-noite e vinte, certamente foi a de que é o melhor livro do Galera. Em suas duzentas páginas, o romance regasta um tempo, uma ideia de futuro, a promessa de que a vida daria certo demais para a muchachada que imaginou os princípios da internet doméstica como a condição perfeita para projetar uma geração que refaria o mundo inteiro - de novo.
Partindo dos relatos de três personagens, reconectados pelo assassinado de um quarto amigo - escritor catapultado por um spamzine literário do final dos anos 1990 -, Galera constrói um texto cheio de lirismo, sem pieguices ou artificialismos na escolha dos verbos, dos tempos, dos adjetivos. A combinação dessas vozes, bem delimitadas, assentadas em pesquisa considerável e diferentes entre si, e costuradas por transpirarem certo deslocamento em comum, é a chave para a gente sacar que nenhum sucesso supera o fracasso de - a toda hora - assistir às coisas morrerem, às expectativas encurtarem, ao nosso terreno sendo ocupado.
É inevitável pensar nos anos do Cardosonline, na euforia em torno daquela gangue, na descoberta de um espaço para ser visto, ouvido, para além do pátio do colégio, da cantina da faculdade, ou do bar da noite estranha. Toda uma geração classe média branca brasileira que se debruçou sobre a conexão discada, querendo encontrar alguém afim do outro lado da linha, sedendo por revelar o tesouro pop inalcançável. Eram horas e horas, madrugada adentro, livre dos algoritmos, imaginando que havia um tempo completamente inédito a ser escrito, um percurso autônomo, feito de relações desimpedidas, sem língua, sem fronteiras.
No romance de Galera, as lembranças de Aurora, Antero e Emiliano impõem um doloroso acerto de contas com o tempo e, parágrafo a parágrafo, terminam por desmontar a utopia toda, então assoberbada pela pouca idade de quem não suspeitava do tamanho do atropelo - web concentrada, web vigiada, web patrocinada, web comercializada, web censurada, web embolhada, web polarizada - que chegaria mais tarde. No fundo, a literatura ensaiada em mailings e blogs não impediu a vida de repetir os mesmos tropeços do tempo do jornal e das páginas do livro. O renascimento do suporte em papel, em grande medida, é sintoma disso.
Quinze anos depois, os depoimentos dos colaboradores do Orangotango - o nome do zine literário que, em Meia-noite e vinte, circulava por e-mail no começo dos anos 2000 - revelam trajetórias pouco criativas, tristemente previsíveis. O amigo que se rendeu à publicidade - e cultivou o reino Umbigo na barriga -; a amiga que tentou a sorte (o destino) na vida acadêmica, esquecendo que poucos lugares são tão carta-marcada e cifrados quanto a universidade pública; e o jornalista que se apaixonou pelo jovem escritor assassinado e que tem, agora, a oportunidade de fazer esse amor dar certo numa biografia póstuma do Duque, o amigo morto, encomendada por um editor macaco velho
São depoimentos atravessados por chantagens e frustrações, traições e melancolia, ambições, pânico e desesperança. Depoimentos profundamente carregados de saudade, de imagens do tempo em que a molecada, ainda aos vinte anos, traçava rotas fantásticas na web, convencida de que a amizade, a criatividade, a anarquia, a putaria e a magia seriam possíveis, como nunca tinham sido antes, para sempre e, irreversivelmente, para a humanidade inteira.
Lindo livro.