Quando li sobre a Internacional Situacionista pela primeira vez, tinha uns 20 anos. Foi no livro do Home publicado pela Conrad, no começo dos anos 2000. Descoberta, porque eu nunca tinha entendido bem como eu podia ser ao mesmo tempo rebelde e integrado, como eu podia só escutar bandas inglesas e ainda assim achar que eu estava no lado do contra. Contra o quê, se eu fazia tão parte de tudo?
O ponto era que eu não cabia onde eu tinha crescido. Nunca planejei a maior parte do pacote que os espaços que eu frequentei prescreviam. Então, ler o livro do Home e descobrir sobre todos aqueles grupos e entender que eles eram referência do punk inglês, e de tanta coisa que o pop celebraria depois, fez muito sentido. E começou a assentar muitas ideias sobre o que eu poderia ser e como eu me sentia, entrado o século XXI.
Depois das tantas leituras que fiz sobre os situacionistas, nunca tive dúvida sobre o lado para onde pendia meu interesse. A divisão do grupo, em 1962, com Debord e Vaneigem dispensando o braço artista da organização, mostrava outra coisa que eu também vinha experimentando. Ser marxista não era condição para se sentir do contra ou para imaginar um mundo diferente. O caminho francês dos situacionistas passava a entender que toda arte fatalmente cederia à imagem espetacular e que a revolução precisava se afastar cada vez mais do pensamento criativo, marca da sua fundação, para priorizar a análise crítica (científica?) dos modos de funcionamento da sociedade e do “capitalismo”.
Ler Marx é chato.
É lógico que, naquela cisão, me identifiquei muito mais com Jorn e seu irmão, o Jørgen Nash, e a seção escandinava da IS. O Jorn tinha sido membro do CoBRA, espécie de tresloucação do expressionismo, e tentara fundar uma filial da escola de design de Ulm, a mesma escola que Pignatari teria visitado durante a gestação do movimento Concreto no Brasil. Max Bill, diretor da escola na época, negou o pedido; em resposta, Jorn saíra com a ideia da Bauhaus Imaginista, grupo que, mais tarde, se somaria à fundação da Internacional Situacionista. Saca esse nome: Bauhaus Imaginista.
Os situacionistas fracassaram. Hoje, não resta qualquer dúvida sobre a insuficiência. Como é fácil palpitar de frente para trás, sempre entendi esse fracasso como consequência do abandono da imaginação. Por mais que Maio de 68 tenha sido politizado, cheio de nuances e complexidades que dificilmente encontram consenso entre os que estudam o “momento”, parece bem importante o simbolismo de boa parte da revisão da data explicar a separação dos dormitórios da Universidade de Nantes, entre mulheres e homens, como um dos seus gatilhos. A galera queria, como ainda queremos, gozar.
Daí vai ter um batalhão de gente querendo ensinar sobre a dimensão política do sexo e tal. Sem dúvida, isso tudo existe. Só que ainda continuo achando que o jogo, a experimentação sensível, a imaginação, a sensualidade da coexistência, a força do pensamento livre, a diluição do medo diante da diferença, tudo isso cabe, com muito mais fôlego e capacidade de transformação, naquilo que os situacionistas do Norte chamavam de arte.
Pensem no trote que o coletivo alemão Spur aplicou na elite cultural de Munique, em 1959, ao convidá-la para a abertura de uma expo com presença do Max Bense, que nunca apareceu. Nunca apareceu porque nunca foi convidado e, apesar do comunicado que anunciava uma fala de Bense sobre estética informacional, os presentes ouviram uma fita gravada com alguns trechos de textos lidos, como se fosse o autor, por um dos integrantes do Spur. O próprio Bense ficou revoltado com a farsa.
Foi isso que Debord e Vaneigem botaram para fora da IS em 1962. A crítica farsesca da farsa. A ficção. Acontece que a segunda metade inteira do século XX deixaria translúcida - talvez como nunca, e muito provavelmente por conta da ajudinha dos meios e de todos os gadgets que colecionamos desde então - a tara que cultivamos pela ficção.
Outro dia me peguei pensando no seguinte: a opção pela crítica marxista do espetáculo tornou os situacionistas pós-62 entediantes. A situação, o détournement, a deriva, suas principais armas, porque convocavam visceralmente imagens alternativas ao mundo programado, ficaram secundárias na narrativa que a gangue de Debord propôs para a vida. Ninguém quer ler Marx, é a real. Quem escreve sobre Marx não vê a hora de escrever sobre o que veio depois.
Na introdução do seu livro sobre os situacionistas da rota Dinamarca-Holanda, Rasmussen e Jakobsen descrevem a festa da ficção situacionista como a busca por uma poesia feita por todos. A poetry made by all. Quer dizer, a revelação repentina de que qualquer pessoa poderia trocar a sua vida de trabalho e consumo por um projeto de criação. Acordar para jogar amarelinha. A melancia como esponja, dia sim, dia não. A conversa sobre a vida no lugar das instruções de morte que nos damos - uns aos outros - todos os dias. Deadlines.
A grande sacada das plataformas do capitalismo de agora foi enxergar o que Debord não conseguiu, ou, por vaidade (artista frustrado), não quis ver. A revolução possível, a maior, talvez a única, é a da reimaginação. As correntes de dança ou dublagens no TikTok são a materialização mais perfeita da poesia feita por todos nós.
No seu ácido documentário sobre o nosso tempo, sobre a fabricação da realidade, as fake news, em 2016, Adam Curtis enxertou uma passagem fabulosa, linda e melancolicamente triste. Ao som de “The vanishing American family”, três garotas dançam, em slow motion, para uma provável câmera de celular. É lindo, porque é a poesia, e é triste, porque é a poesia, que poderia libertar, sendo usada para deixar tudo igual.