Sempre me faz falta pensar qualquer movimento de ideias, na filosofia, na ciência, mas especialmente nas artes, a partir de uma fotografia. Quer dizer, mais que “a partir”, melhor seria “junto de”, “colado a”, tendo a foto como gabarito. Por isso, quando o movimento em questão antecede à foto, à sua invenção, mais se for só por um par de décadas, fica algum incômodo por ter que decifrar o que eu quero entender através de um retrato a tinta.
No começo dos meus vinte anos, cada vez mais vagos, costumava sair com um casal de amigos, que vou chamar de Raul e Flávia. O Raul era um sujeito bem atípico, o que fazia dele alguém interessante também. Saíamos para andar, e ele contava a história das bengalas ou recuperava alguma coisa do barroco do Bach, para explicar os exageros da vida contemporânea. Eu ouvia aquilo tudo ainda com as matrizes didáticas que trazia da escola; achava admirável a desenvoltura com que ele trançava nomenclaturas que, pra mim, eram só conceitos que tinham me ajudado a passar no vestibular. A Flávia repetia várias das relações que o Raul sugeria e, por trás daquilo, do modo como faziam e procuravam os laços entre pessoas e épocas distantes - da gente e entre si -, saltava um tom místico, ao qual eu era resistente, sem saber que, com o tempo, ganharia feição não menos nebulosa, mas muito mais intuitiva e “interpretável” para mim.
Numa noite, estávamos em algum café da cidade, falando de signos, porque, no sistema operado pelos dois, a astrologia era uma fonte de conhecimento razoável, totalmente cabível de testemunhar a história do pensamento ocidental. Enfim, estávamos tomando alguma coisa sem álcool, quando o Raul comentou que eu era um pós-romântico. Tratei de entender o adjetivo, acionando meu repertório do segundo colegial (chamava assim): pós-romântico, naquele percurso, seria realista ou simbolista?
Levou algum tempo para eu farejar que o Raul falava de um romantismo que eu não conhecia, não tinha podido acessar via a apostila de Literatura Brasileira. Raul falava de um grupo que, como grupo, tentara apontar para um futuro, um futuro fruto de uma resistência que, em seu presente, esse mesmo grupo lançara justamente às marcas do futuro que se fazia sentir via fenômenos como concentração das cidades, das máquinas, do comércio.
Mais tarde, passei a ler sobre o romantismo. O que eles foram, e o que eu fui ou era, começou a ligar com outras peças, uma delas, o texto do Raul. Tudo fez sentido; o único resíduo que continuava sem encaixar era justamente a imagem, e as imagens, que eu conseguia achar do Schlegel. Tinha sido, jovem, tão adiante, rebelde, utópico e apaixonado, defensor do amor e das amizades livres, que aquela textura ainda clássica das bochechas rosadas e das dobras volumosas não conseguia fazer jus à ideia de um artista anarquista onde sempre quis fazer caberem meus ídolos.
Para Raul, isso era eu: alguém em busca de um grupo capaz de imaginar outro futuro para a amizade. Usei a boba mas eficiente metáfora da banda, dos bandos, para ser pós-romântico, como talvez sempre tenha sido, em Até de repente.
Pouco tempo depois, não sei se um ano (que, na verdade, é muito tempo), Raul e Flávia se separaram. Tenho nenhuma notícia do Raul. A Flávia saiu para conhecer o mundo, voltou e, agora, continua tentando acreditar num jeito de ser que, aparentemente, só consegue ser na ideia de futuro.