toda disciplina tornada autônoma deve desmoronar

O desenvolvimento dos conhecimentos da sociedade. que contém a compreensão da história como cerne da cultura, adquire por si um conhecimento sem retorno, expresso pela destruição de Deus. Mas essa “condição primeira de toda crítica” é também obrigação primeira de uma crítica infinita. Quando nenhuma regra de conduta pode mais se manter, cada resultado da cultura a faz avançar para a dissolução. Como a filosofia no instante em que ganhou sua plena autonomia, toda disciplina tornada autônoma deve desmoronar, primeiro como pretensão de explicação coerente da totalidade social, e depois até mesmo como instrumentação parcelar utilizável em suas próprias fronteiras. A falta de racionalidade da cultura separada é o elemento que a condena a desaparecer, porque nela vitória do racional já está presente como exigência.
— DEBORD, 2012, p.120
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Sociofobia

Uma das partes boas de ler ensaios contemporâneos, sobre temas da contemporaneidade, diz respeito a certa aposta que essas leituras exigem de quem lê. Quer dizer, ao ouvir uma opinião, bem costurada e fundamentada, sobre questões nas quais nos vemos envolvidos diariamente, parece que nos sentimos obrigados a, a partir da nossa experiência imediata, dar nossa versão. 

Mais ou menos isso aconteceu comigo enquanto navegava as páginas de Sociofobia, do César Rendueles, editado no Brasil pelo selo Sesc. 

O livro propõe uma - entre tantas possíveis - reconstrução dos fundamentos das relações sociais diante da introdução de inovações tecnológicas, dos primórdios da Modernidade para cá. De que maneiras os homens trabalham por relacionar-se entre si, desde os tempos do mercantilismo desenfreado que entregará, no século XX, as teorias econômicas neoliberais, marcadas sempre, e profundamente, pela experiência da técnica nas diversas ondas da Revolução Industrial (rebatizada de acordo com a conveniência do momento)? Como essas transformações prévias nas relações entre os homens prepararam o terreno para a emergência das redes sociais digitais?

Rendueles basicamente aponta para uma trajetória do desmanche dos laços comunitários e sociais que, na sua visão, sobreviveram, como herança das sociedades primitivas, até a Idade Média. Do Renascimento em diante, a urgência pelo desenvolvimento técnico teria dissolvido gradativamente as bases de homens conectados a homens. E essa história da desconexão, em nome principalmente da produção de uma riqueza não mais compartilhada, é a história que, de acordo com o autor, recomenda prudência ante a celebração do mundo digital e do ciberutopismo.

Discutindo ricamente temas como direito autoral e as origens do copyleft, Rendueles desmistifica a rede livre e democrática, revelando bastidores de interesses privados e lógicas neoliberais. Mantendo sempre o cuidado de destacar as falhas da tradição de projetos "de esquerda", destacando a crítica à centralização totalitária das tentativas comunistas de coordenação social, o autor surpreende ao aproximar os mecanismos "procedimentais" por trás da ideologia do direito autorial livre da crença numa suposta autorregulamentação positiva do sistema de preços em economias neoliberais. 

O texto é claro e acessível, apesar de ser bastante denso em alguns momentos. De maneira clara, não tão parcial quanto se poderia imaginar, Rendueles escreve um ensaio que coincide com algumas desconfianças pessoais que tenho diante do oba-oba deslumbrado que ronda a febre de start-ups e a dita economia do compartilhamento. O cool manejado por indústrias responsáveis por cadeias de produção repletas de miséria requer dobrada atenção. 

Minha aposta: Rendueles parece ter razão.

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Depois que inventaram uma maneira de industrializar o mundo, as coisas em circulação no mundo, ficou quase inútil separar o que é criação para o mercado daquilo que é "genuinamente puro". Fato é que, desde que os situacionistas, em meados dos 50, viram na "construção de situações" uma maneira de restituir, no homem, sua "vocação lúdica", a situação também encontrou seu espacinho na engrenagem da produção e do consumo.

The Whip, Coney Island, 1950 (Harold Feinstein)

The Whip, Coney Island, 1950 (Harold Feinstein)

Metrô de Londres, década de 1970 (Bob Mazzer)

Metrô de Londres, década de 1970 (Bob Mazzer)

o barato da poesia, ou a poesia barata

Várias são as vezes em que a gente se descobre aflito por reconhecer alguma semelhança entre o que acontece na arte e na publicidade. Vamos encaminhar, bem rápido, um porquê possível. 

Poucos dias atrás, o Burger King fez esse desvio - bem na linha do détournement situacionista -, para homenagear os 90 anos da rainha Elizabeth II. Se há quem ache a ação simpática e "oportuna", há certamente quem enxergue nela simples oportunismo. 

Agora, vamos dar uma olhada nesse trabalho do Robert Montgomery, parte de três "billboards" que o artista instalou em Londres, mesma cidade da loja do Burger King, lá em 2012.  

Montgomery se diz herdeiro dos situacionistas e é também da linhagem dos artistas que criam a partir do remanejo de signos consagrados pela cultura midiática. Seja no uso de outdoors, como no exemplo aí de cima, seja em seus versos emitidos em lâmpadas néon, o escocês invade a comunicação "de massa", como já havia acontecido com diversos trabalhos da Pop Art, para subverter seus sentidos originais. Evidentemente, parodiando letreiros publicitários, o artista não deixa de se aproveitar da força de promoção que esses meios adquiriram desde o final do século XIX. Mas, segundo Montgomery, o procedimento seria meio um "feitiço contra o feiticeiro".

O que interessa nesse post é tentar entender o que existe em comum por trás dos dois processos criativos e por que reconhecer tal semelhança pode incomodar.  

Semelhança, "concentração sêmica", afinidade de sentidos, é a matéria-prima da metáfora. Tanto no caso do letreiro do Burger King como na obra de Montgomery, existe uma semelhança em relação à comunicação publicitária. "Isso é uma publicidade". "Isso é como uma publicidade".

Por outro lado, mais sutil, porque já nos acostumamos com ele, relacionamos esses formatos, esses meios (painel, letreiro, outdoor) com a publicidade por uma relação de contiguidade. Ou seja: por sempre carregarem mensagens publicitárias, entendemos que toda mensagem que veiculam é publicidade. Essa construção de sentido obedece à lógica da metonímia, quando um elemento é índice do outro, por, de alguma forma, ser reconhecido como parte constitutiva/derivada dele. 

Como muito didaticamente ensina o mestre Pignatari, referindo-se ao linguista russo Jakobson, as mensagens que se constroem simultaneamente por processos metafóricos e metonímicos são as que evidenciam a função poética da linguagem. Em outras palavras: um texto com cotas semelhantes de metáfora e metonímia, e dependente desse casamento para fazer sentido, é um texto poético, um texto que traz à tona a força da mensagem.

Queiramos ou não, e essa seria a façanha das análises de um mestre como o Pignatari, às vezes, e para além da ideologia, a publicidade e a arte podem coincidir na poesia.